Thursday, October 14, 2004

"CATEQUESE TERMINAL" - versiculo 4

Aqueles seios nascem no poente como os sóis entre as colinas possíveis. Ela está debruçada sobre a cabeça dele e acaricia-o enquanto ele lhe beija o ventre turbulento de espera e da ânsia de libertação. E os seus dedos brincam infantis por entre a cabeleira dele, à medida que ele se deita e a enfrenta, olhos postos na madrugada do rosto dela. Sombra. Só se fosse possível morrer no êxtase da seda dos lençóis, seria essa visão de facto tão sublime como aparenta. Ele não se cansa de ali estar e de ser envolvido e torturado daquela dolorosa forma, porém só ali estará enquanto for novidade e não estiver cansado de olhar todas as tardes para aquele rosto ainda adolescente por entre a luz filtrada do sol que entra pela janela onde folhas de palmeira regressam uma e outra vez ao sabor da brisa, permitindo que sejam os seios dela perpetuamente a fazer a fotossíntese, a criar barbaridade, a mastigar o vento. Quando por vezes ele se torna mais atrevido ela acaricia-o perigosamente e ambos riem de forma fervorosa, fazendo ecoar pelo deserto os seus gritos de criança. Quando ele se torna mais violento ela gosta. E ri de êxtase quando ele a persegue até ao canto do quarto e a força a fazer o que ele quer deitando-se sobre ela e pressionando a sua carne contra a dela até as duas serem uma só. Na calmaria da tarde. Ambos riem-se do momento em que se transformam numa nuvem exultante, misturando os cabelos de um no outro e os recentes líquidos viscerais que ambos libertam abundantemente. Depois vem aquela temperatura do ar e eles caem lado a lado sobre a esteira adormecidos.
Madalena.
Quando ele acorda tem vontade de a acordar a ela também para se divertirem por mais um pouco mas prefere sair sem que ela o perceba. Sai de mansinho apertando a túnica em volta da cintura, sob o olhar predatório dos velhos frequentadores da taberna de Jacob. Por momentos ele sente uma certa mágoa ao pensar que é ali que Madalena trabalha. Entre os brutos. Depois ri-se desse pensamento ridículo e dá graças a Deus por poder tirar um certo partido desse facto. Pelo caminho de casa, os cabelos ao vento, ainda solta gargalhadas ao pensar em como se diverte de graça e depois transforma a gargalhada maquiavélica num sorriso de ternura. E esse é para Madalena. Sua companheira das más horas. Pois que nem tudo são espinhos ou cardos, pois que entre as águas dos fétidos pântanos brilham nenúfares.
Ele nunca se condena pecador por aquilo que faz. O Senhor é o seu caminho, diz ele, tudo o que faz está bem feito pois tudo o que faz é o senhor que manda fazer.

1999

PEOPLE'S PARTIES (Joni Mitchell)



All the people at this party
They've got a lot of style
They've got stamps of many countries
They've got passport smiles
Some are friendly
Some are cutting
Some are watching it from the wings
Some are standing in the centre
Giving to get something...
Photo Beauty gets attention
Then her eye paint's running down
She's got a rose in her teeth
And a lampshade crown
One minute she's so happy
Then she's crying on someone's knee
Saying laughing and crying
You know it's the same release...
I told you when I met you
I was crazy
Cry for us all Beauty
Cry for Eddie in the corner
Thinking he's nobody
And Jack behind his joker
And stone-cold Grace behind her fan
And me in my frightened silence
Thinking I don't understand...
I feel like I'm sleeping
Can you wake me
You seem to have a broader sensibility
I'm just living on nerves and feelings
With a weak and a lazy mind
And coming to peoples parties
Fumbling deaf dumb and blind...
I wish I had more sense ot humor
Keeping the sadness at bay
Throwing the lightness on these things
Laughing it all away
Laughing it all away
Laughing it all away

1974

Wednesday, October 13, 2004

"CATEQUESE TERMINAL" - versiculo 3

Os olhos são os de uma criança. E o sorriso e a voz. Inocência perversa. Esta criança é tão especial, tão composta de elementos proibidos, se eu a quiser olhar assim... Ele tem 15 anos, quase 16, e é como se tivesse também 30 ou 8, tanto faz, ele pode ser tudo e pode ser nada. Ele diz-me na sua invejável voz de imatura puberdade que toma duche com o irmão e é quase perturbante que ele se possa partilhar tão frivolamente com alguém tão chegado como eu nunca tive. Pois que sempre tive carência de alguém tão completamente exposto para comigo, oh misericórdia que sempre fui um desgraçado mas calar-me-ei imediatamente com tais lamúrias pois tenho fobia a enjeitados e a pobres tristes que perdem o rumo e só se lamentam. Ele diz-me o que fez à tal rapariga na tarde do penúltimo dia, e com que jovialidade o faz, a lasciva doçura do mel brotado dos olhos de terra e a vida escorrendo espérmica pelo canto da minha mais lânguida visão. Senhor, que perco o meu rumo! E ele diz-me como a ensinou a compor uma árvore de natal e a ajudou a descompô-la em três tempos e como ela lhe prometeu facilitar as coisas entrando para o recinto dos banhos e voltando radiosa a surgir trajada com um robe vermelho da cor do céu.
Judas iremos juntos, diz-me ele com a tal voz de fabulosos perdões. Iremos juntos um destes dias!
Oh sim. Iremos. Iremos juntos até ao fim do mundo, até onde a tua força me puder levar.
Ele conta-me como esteve nos braços dela por mais de hora e meia e ri-se à minha decrépita pergunta de como “lá estiveste sem parar?” - Ho Ho Ho, não Judas, respondeste. Com algumas pausas evidentemente. E eu não te acreditei, Jesus Cristo, não te acreditei por alguma coisa ou por não querer ou por não poder por uma mórbida questão de sobrevivência... NÃO, pensei. Não és tão perfeito como eu te vejo, nem é tão perfeita a tua incursão pelo pecado que combatem os teus olhos, nem pode ser tão perfeita a tua presença mesmo no mais nojento dos lugares ou na mais nojenta das acções. Serias perfeito até a vomitar as entranhas numa esquina alcoolizada pela maré alta, serias perfeito na cama de uma puta reles como ela, serias perfeito apodrecido pelo vento sobre a lágida lápide da minha própria sepultura, até aí ~ serias perfeito.
Ele conta-me como ainda se deixou ficar por um bocado e se foi “embora sem pagar!” e ri-se, mais uma vez, ele ri-se com vontade e exclama “ela é decente, só o faz comigo...”
Bom sangue!
Decente Decente Decente DECENTE ~ pode ser que o fosse, pode ser que o seja, pode ser. Mas sabendo que não me mentias eu não te acreditei ou terá sido o contrário, acreditei desde sempre mas sabia que mentias. Tudo isso me dizia ele exposto sobre a larga lage da base da cama em que dormia, ah como devia dormir então, dizia-me de sorriso vestido e sábia palavra arqueada no canto da boca, os dentes brancos e alinhados, a língua rosada na linguagem dos olhos, o mel das palavras ainda escorre e eu lembro as confidências, as poucas que tinha havido, a sua paixão pela companheira mais velha de um amigo de outras margens, não meu (ou quase), seguramente não dele, e a forma como parecia encontrar-se no leito e nas brincadeiras desta rapariga, também ela mais velha, Maria Madalena, que muito mais próxima da minha idade o preferia a ele, como todas Senhor como todas. Ou seria impressão minha?
Judas! Iremos juntos... disse-me “apenas uma vez tive um amigo como tu...” e careci de tradução. Penso agora no que queria dizer. Pois que podia Ter-me em alta estima mas nunca foi tão junto a mim como aos outros. Pedro. Sim, era Pedro o mais fiel. Mas recordo aquela declaração com as rosas do pinhal por que vivi, como os cardos da alvorada pontilhada de rubras gotas do meu sangue chorado nos olhos invisíveis de quem não vi, pois não vi qualquer olho nem ninguém jamais terei visto senão Ele. Fé! Não sei o que seja, mas te digo que também não o sabes. Tentei e agora tanto tempo depois é como se ainda tentasse ter-te como unha da minha carne pois que foste espécie de ídolo roubado aos meus pesadelos e quis que compensasses toda a atenção que te dispensei. Palerma! Não és tu, sou eu, o deste lado, o freak, o mad guy da zona sul. Judas Iscariote. Teu amigo.
Ele (tu) conta-me pouco do que se passou a seguir. Falou com uma outra fulana fechado no quarto do fundo onde parecia não haver sinal suficientemente forte da parabólica (Toca-lhe e viverá - sim, gastaste um milagre com esta futilidade, em vez de salvares um leproso) e o som roufenho da música não deixava escapar vozes nem suspiros nem gemidos e ah, só o voltei a ver à saída nesse dia. Disse-lhe adeus Jesus que já me vou. E ele disse já? Tão cedo? Mas sabia muito bem a que horas eu me ia e deve Ter pensado que me tinha deixado sozinho e que isso era uma grande desfeita para as visitas mas não fez grande caso enquanto que eu só queria rebobinar o filme e ver tudo outra vez, ouvir cada palavra que o filho de deus me tinha dirigido e cada um dos pecados que me tinha contado. Inocência perversa. Nada mais. Voltei a vê-lo à saída quando abusivamente tivemos que abrir a porta e pensei “não, que vamos surpreendê-lo em flagrante delito” mas não. Estava sentado ao pé dela, o ar grave inundado daquela estranha distracção que por vezes o invadia. Estendi-te a mão e mantiveste-a na tua durante todo o tempo da conversa e da despedida. Já? Tão cedo?
Sim Jesus. Amanhã há mais. O caminho é longo e tenho de me pôr à estrada. O caminho é tão longo que muito provavelmente ainda caminharei quando, morno, te fizeres ao leito esta noite. Esta e todas as outras, Jesus Cristo, Todas as outras.
1999

Tuesday, October 05, 2004

b i t t e r - s w e e t


Well this is such
A sad affair
I've opened up my heart
So many times
But now it's closed...
Oh my dear
Every salted tear
It wrings
Bitter - sweet applause.
But when the show's in full swing
Every once in a while
High stepping chorus lines
Mean I'm forgetting
Mein lullaby - liebchen.
How rich in contrast
Love can be
Sometimes I'm quite amused
To see it twist and turn
To taste - both sweet and dry...
These vintage years!
Lovers you consume, my friend
As others their wine.
Nein - das ist nicht
Das ende der welt
Gestrandet an leben und kunst
Und das spiel geht weiter
Wie man weiss
Noch viele schönste...wiedershen.
And now, as you turn to leave
You try to force a smile
(As if to compensate...)
Then you break down and cry
(Ferry/Mackay)

Sobre Canibalismo

A noite passada contei a um amigo que estava finalmente a entregar-me a essa arte popular que é fazer blogs. Disse-lhe que o "tema" era Canibalismo (essa metáfora), declaração que originou um interessante debate que não tentarei reproduzir, embora seja importante considerar.
Ambos sabiamos que o Canibalismo é mais interessante quanto mais funda for a metáfora. Falámos de hierarquias sociais e profissionais e até que ponto será pouco ético saltar por cima de tudo e de todos - devorando-os conscientemente - para chegarmos aos nossos objectivos. Sabemos que a sociedade põe em balanças douradas tudo o que é moral, mas para que esta ideia seja pelo menos digna de ser levada à consideração, precisamos de discutir o conceito de "moral". E esse, meus caros, é volúvel como uma impressão digital.
Será sensato dizer que cada pessoa tem a sua moral?
Para um vegetariano, pode ser imoral comer carne. As razões variam desde o desejo de equilibrar o metabolismo até ao ter tido um ouriço caixeiro chamado Sigourney quando se tinha cinco anos. Muitas vezes se diz que os vegetais não têm sentimentos. E aqui eu riposto e levanto-me com um dedo acusador apontado em frente, para dizer Ahh! Aí é que te enganas! Eu conheçi uma Couve de Bruxelas que tinha! Genéricamente, diz-se que não há depressões entre as cenouras, que as laranjas não se apaixonam e que os nabos não são assim tão nabos. As vacas, já é diferente. Está provado que as vacas têm sentimentos e, contudo, mais de metade da população mundial (a que pode, lá está) come vacas todos os dias. E não há questões morais: está morta e cozinhada, no prato, não muge, não pasta e não fui eu que a matei.
Adiante.
Porque é que não comemos gatos? Há povos que comem e dizem que são uma iguaria sem par. Para as nossas cabeças ocidentais, os gatos servem para estar a ronronar sobre o sofá. Por outro lado, na India, há sociedades que veneram as vacas ou os bezerros ou lá o que é, e que seriam incapazes de lhes tocar. Sendo assim, se não temos o direito de discriminar quem quer que seja pela sua inteligência, sexualidade, côr da pele, gosto musical ou conta bancária, quem somos nós para o fazer consoante a posição que o nosso adversário ocupa na cadeia alimentar?
Ainda somos um ecossistema. E um ecossistema quer-se democrático.
Todas estas questões podem ser muito comuns e até cliché, mas são urgentes respostas satisfatórias para que se siga em frente. No meu blog, disse eu ao Bruno, o Canibalismo será recorrente porque afinal de contas ele está em toda a parte: em casa, no trabalho, na família, no amor, nas repartições publicas, nas escolas, no IKEA, em Hollywood, no Parlamento, nos Açores, entre amigos, entre colegas e até num filme do Manuel de Oliveira.
Conclui-se, por isso, que continuamos tão predarores quanto antes. Que inventámos o fogo, a roda, o preservativo, o Papa, o caminho marítimo para a India, a Internet e a Barbra Streisand (não por esta ordem). Mas continuamos a matar como podemos, porque somos animais. Finalmente andamos em pé e perdemos os pêlos que tinham mais piada. So what? A nossa melhor invenção é a lei do mais fraco: salve-se quem puder. Ao menos assim, estamos todos de consciência tranquila. Porque o homem sempre foi um ser egoista, porque a nossa liberdade acaba onde a do outro está a começar, porque nos basta existir para condicionar a vida das outras pessoas... todos somos canibais acidentais. Resta-nos aproveitar como for possível.
Eu continuava, durante horas se fosse preciso. Mas tenho de ir - o meu assado está a arrefeçer. Até breve.

Ingrid Pitt em "The Vampire Lovers" (1970)

Sunday, October 03, 2004

"UM FIO DE BABA ESCARLATE" (parte 1)

O amor mata, uma e outra vez, como dizem os poetas.

Se Leonor fosse um bocadinho mais sensível à arte, provavelmente teria mais paciência para as coisas do dia a dia. O tipo de sangue que tem não é de uma mulher doméstica que tem de ficar em casa a fazer arrumações enquanto o macho vai trabalhar. Às vezes irrita-se e parte objectos, diz palavrões ao espelho e atira verduras podres às fotografias de Greta Garbo que Oscar pôs na sala. Depois limpa tudo e deixa as coisas como estavam, por acreditar que um dia chegará a sua vez de explodir de forma eficaz, e que nesse dia não haverá nada nem ninguém que a detenham. Leonor é daquelas mulheres revoltadas que não sabem com quê. As notícias irritam-na – parece-lhe tudo uma valente brincadeira sem fim. No dia a dia diverte-se a detestar tudo o que há para detestar. Brócolos, política, arte sacra, ponto-cruz, o Vaticano, moda, casais felizes, aeróbica e sexo tântrico. Houve uma altura em que se inscreveu na associação Mórmon local para aprender a dominar a fúria e cultivar a paz (se não acabasse a partir a cara a uns tantos cidadãos) mas foi sol de pouca dura. Foi despedida quando descobriram a sua colecção de vibradores e a sua predilecção pelo canal Sexy-Hot em noites de descodificação.
Quando Oscar chega a casa à noite ela está a ver futebol. Ele até gostava de ver a telenovela ou outra coisa qualquer, mas ela não lhe dirige a palavra – em cima da mesa está o jantar coberto com a tampa de plástico de ir ao micro-ondas. Ele cumpre. Depois ficam os dois a ver quem se vai deitar primeiro. Ele quer ver o TCM, que passa um clássico noir pela 400ª vez. Ela até já foi buscar o dildo e quer ver o Sexy-Hot... Em noites de menor paciência, um deles acaba por ganhar. Mas a maioria das vezes acaba com uma directa e com o canal de televendas ligado até de manhã.
Um dia, acha Oscar, vai chegar a vez dele explodir de maneira suculenta, virtuoso como um furacão. Nada lhe escapará. Oscar é pacato, não parte uma chávena. Gosta de Miró e de Wim Mertens. Ocasionalmente sofre graves ataques de namedropping e não poucas vezes usa termos em estrangeiro (pois), por achar que ainda não se inventou na cultura lusófona um nome para aquilo que deseja exprimir. Quando tem algo a dizer e não pode, tranca-se no lavabo da redacção em que trabalha e autoflagela-se até que não lhe sobre nenhum conceito articulável. Frequentemente, agrafa o prepúcio duas vezes, vai até à portaria ver se há novidades, sorridente de dor, e volta a trancar-se no WC para remover os agrafos com aquele pinchavelho próprio que parece um dragão. Enquanto vai e volta, enrola o pénis em papel higiénico para que não passe sangue para as calças, não fosse Leonor ver as manchas vermelhas e convencer-se que o marido se transformou num feroz desvirginador de estagiárias. O papel causa-lhe um chumaço maior do que o habitual, facto que levou o trólarilas da portaria a piscar-lhe o olho em repetidas ocasiões. Olá meu pombo! diz a bicha. Oscar apavora-se e volta para trás vermelho de agonia. Depois limpa cuidadosamente os pingos vermelhos do chão e atira as toalhetas para dentro da sanita. O momento de realização é o puxar do autoclismo. E lá vai a dies irae esgoto abaixo.
Com calma, já pode escrever sobre o estado do mundo. Textos que Leonor não lerá.

Ontem foi o aniversário de casamento de Oscar e Leonor. Ela preparou um bolo carregado de purgante para poder ver o marido esvair-se em merda durante uma semana, mas mudou de opinião quando ele chegou.
Ele entra em casa às 21 com um ramo de papoilas e um sorriso pseudo-aristocrata.
O que é que tu queres? atira-lhe a fera.
Flores para uma flor...
Vai-te foder...
Então Oscar opta por outra táctica. Põe as flores numa jarra deixa-as bem à vista. Depois senta-se à mesa e limpa os óculos enquanto vai dizendo Hoje vamos jantar a um restaurante absolutamente chique onde os criados vestem Ralph Lauren, os talheres pesam meio quilo e a mais reles bifana custa para lá de vinte euros.
Leonor levanta-se e esvoaça pela sala, largando penas azuis na carpete, com a voz de rouxinol a cantarolar Espera um instante que me vou arranjar!
Depois, enquanto ela está no toucador a glamourizar-se, ele vem ameaçador por trás e atira-lhe, de voz cava junto ao ouvido, Mas depois vens comigo à Cinemateca ver um Eisenstein!
Para Leonor, isto é guerra decretada. Com os olhos a cuspirem fogo ela ergue-se, vermelha de ira, perante o marido mais pequeno que um feijão.
Nem morta e enterrada!
Vens, vens.
Tu não me provoques! O que tu queres é sangue!
Oscar desta vez não desiste e resolve continuar a apostar na premissa gastronómico-intelectual. Escuta, Leonor, depois de um jantar desses, caía bem uma sobremesa à boa maneira soviética...
Mas quem julgas tu que és? Hoje um Eisenstein e amanhã estás a no Kurosawa ou no Fritz Lang!

A paciência que Oscar hoje trás teve um investimento de mais dois agrafos que de costume.
Leonor, não podes confundir as coisas. Se pedires um Fritz Lang para sobremesa, convém que tenhas pedido uma Leni Riefenstahl para entrada, depois um Pabst gratinado, um Murnau mal passado... e já agora um Lubitch de 12 anos...
Eu quero que os nazis se fodam!
Oscar tem aprendido a vida toda a controlar a fúria, a lidar com o desamor e com a frustração. Mas desta vez, parece tudo tão mais negro. Quando olha em frente, vê o túnel, a luz ao fundo, ouve Nick Cave, deixa de ter forças, está que nem pode. A puta merece toda a culpa do mundo, que ele morra e ela não se consiga ver livre do cadáver, ou que o guarde no desespero dos anos até que o remorso desapareça com a última língua de carne seca e fétida.
O punho dele cerra-se em torno da própria garganta, Se dizes isso outra vez, mato-me já aqui!
Leonor põe a mão na anca e balouça-se, mais brejeira que escamas numa sopa de peixe. Por momentos é uma Marlene Dietrich Alfama Mix. Da sua boca as palavras brotam como pus de uma stigmata. Morre e apodrece! E se quiseres leva o mariconço da portaria a comer o Eisenstein! Biltre!
Dizendo isto, ela vira-lhe as costas e sai. Oscar fecha os olhos e concentra-se no prepúcio. [Quando era criança não podia usar cuecas de nylon, pois causavam-lhe a irritação da pele e da glande, atirando-lhe uma e outra vez a zona do pudor para uma situação de megera inflamação. Aos nove anos, a mãe quis que ele fizesse uma circuncisão, cirurgia que nunca chegou a ser efectivada, pelo facto de todos os médicos disponíveis sofrerem de avançado grau de parkinson. Mal por mal, antes um hematoma que um órgão sexual parecido com um prato de Fitas à Moda do Douro.]
Leonor ladra na cozinha, atirando à parede o que sobra da Vista Alegre: Vai à merda, filho da puta! E vais encontrar lá a Garbo e os outros mitos intemporais…
Oscar não acredita em Deus. Acredita nos homens e na boa vontade. Mas neste momento, é um facto que se está a sentir muito céptico em relação a tudo o que sabe. A ira sobe-lhe ao rosto.
Leonor, não percebes nada de cinema…
De cima da mesa, apanha o espigão de ferro forjado com que costuma espetar a lenha da lareira. Parece um arco de violino. Óscar tem um certo prazer em apertar com força o cabo e fazer dançar no ar a ponta aguçada. Então ergue o braço e, conforme se dirige à cozinha, um pensamento atroz atravessa-lhe a consciência: queixar-se-á Leonor também do potencial penetrativo daquele objecto?
Cuspiu-se de prazer, por saber a resposta.
CONTINUA (MUITO) BREVEMENTE...

Saturday, October 02, 2004

Dog Eat Dog!

"Tigers Also Stop At Traffic Lights"
Amigos, ou qualquer pessoa que tenha chegado aqui por acaso: para mim, este espaço serve para depositar a incontinência existencial que nos ataca a todos com tanta frequência. Muitos dos escrementos podem servir de espelho a outras pessoas. Não quero com isto parecer pretensioso ao ponto de ousar dizer que a minha porcaria pode servir de alimentação a outras pessoas. Mas, pretensiosismo à parte, é precisamente isso que estou a dizer.
É um mundo cão, que ninguém se questione.
Saudações