Sunday, October 03, 2004

"UM FIO DE BABA ESCARLATE" (parte 1)

O amor mata, uma e outra vez, como dizem os poetas.

Se Leonor fosse um bocadinho mais sensível à arte, provavelmente teria mais paciência para as coisas do dia a dia. O tipo de sangue que tem não é de uma mulher doméstica que tem de ficar em casa a fazer arrumações enquanto o macho vai trabalhar. Às vezes irrita-se e parte objectos, diz palavrões ao espelho e atira verduras podres às fotografias de Greta Garbo que Oscar pôs na sala. Depois limpa tudo e deixa as coisas como estavam, por acreditar que um dia chegará a sua vez de explodir de forma eficaz, e que nesse dia não haverá nada nem ninguém que a detenham. Leonor é daquelas mulheres revoltadas que não sabem com quê. As notícias irritam-na – parece-lhe tudo uma valente brincadeira sem fim. No dia a dia diverte-se a detestar tudo o que há para detestar. Brócolos, política, arte sacra, ponto-cruz, o Vaticano, moda, casais felizes, aeróbica e sexo tântrico. Houve uma altura em que se inscreveu na associação Mórmon local para aprender a dominar a fúria e cultivar a paz (se não acabasse a partir a cara a uns tantos cidadãos) mas foi sol de pouca dura. Foi despedida quando descobriram a sua colecção de vibradores e a sua predilecção pelo canal Sexy-Hot em noites de descodificação.
Quando Oscar chega a casa à noite ela está a ver futebol. Ele até gostava de ver a telenovela ou outra coisa qualquer, mas ela não lhe dirige a palavra – em cima da mesa está o jantar coberto com a tampa de plástico de ir ao micro-ondas. Ele cumpre. Depois ficam os dois a ver quem se vai deitar primeiro. Ele quer ver o TCM, que passa um clássico noir pela 400ª vez. Ela até já foi buscar o dildo e quer ver o Sexy-Hot... Em noites de menor paciência, um deles acaba por ganhar. Mas a maioria das vezes acaba com uma directa e com o canal de televendas ligado até de manhã.
Um dia, acha Oscar, vai chegar a vez dele explodir de maneira suculenta, virtuoso como um furacão. Nada lhe escapará. Oscar é pacato, não parte uma chávena. Gosta de Miró e de Wim Mertens. Ocasionalmente sofre graves ataques de namedropping e não poucas vezes usa termos em estrangeiro (pois), por achar que ainda não se inventou na cultura lusófona um nome para aquilo que deseja exprimir. Quando tem algo a dizer e não pode, tranca-se no lavabo da redacção em que trabalha e autoflagela-se até que não lhe sobre nenhum conceito articulável. Frequentemente, agrafa o prepúcio duas vezes, vai até à portaria ver se há novidades, sorridente de dor, e volta a trancar-se no WC para remover os agrafos com aquele pinchavelho próprio que parece um dragão. Enquanto vai e volta, enrola o pénis em papel higiénico para que não passe sangue para as calças, não fosse Leonor ver as manchas vermelhas e convencer-se que o marido se transformou num feroz desvirginador de estagiárias. O papel causa-lhe um chumaço maior do que o habitual, facto que levou o trólarilas da portaria a piscar-lhe o olho em repetidas ocasiões. Olá meu pombo! diz a bicha. Oscar apavora-se e volta para trás vermelho de agonia. Depois limpa cuidadosamente os pingos vermelhos do chão e atira as toalhetas para dentro da sanita. O momento de realização é o puxar do autoclismo. E lá vai a dies irae esgoto abaixo.
Com calma, já pode escrever sobre o estado do mundo. Textos que Leonor não lerá.

Ontem foi o aniversário de casamento de Oscar e Leonor. Ela preparou um bolo carregado de purgante para poder ver o marido esvair-se em merda durante uma semana, mas mudou de opinião quando ele chegou.
Ele entra em casa às 21 com um ramo de papoilas e um sorriso pseudo-aristocrata.
O que é que tu queres? atira-lhe a fera.
Flores para uma flor...
Vai-te foder...
Então Oscar opta por outra táctica. Põe as flores numa jarra deixa-as bem à vista. Depois senta-se à mesa e limpa os óculos enquanto vai dizendo Hoje vamos jantar a um restaurante absolutamente chique onde os criados vestem Ralph Lauren, os talheres pesam meio quilo e a mais reles bifana custa para lá de vinte euros.
Leonor levanta-se e esvoaça pela sala, largando penas azuis na carpete, com a voz de rouxinol a cantarolar Espera um instante que me vou arranjar!
Depois, enquanto ela está no toucador a glamourizar-se, ele vem ameaçador por trás e atira-lhe, de voz cava junto ao ouvido, Mas depois vens comigo à Cinemateca ver um Eisenstein!
Para Leonor, isto é guerra decretada. Com os olhos a cuspirem fogo ela ergue-se, vermelha de ira, perante o marido mais pequeno que um feijão.
Nem morta e enterrada!
Vens, vens.
Tu não me provoques! O que tu queres é sangue!
Oscar desta vez não desiste e resolve continuar a apostar na premissa gastronómico-intelectual. Escuta, Leonor, depois de um jantar desses, caía bem uma sobremesa à boa maneira soviética...
Mas quem julgas tu que és? Hoje um Eisenstein e amanhã estás a no Kurosawa ou no Fritz Lang!

A paciência que Oscar hoje trás teve um investimento de mais dois agrafos que de costume.
Leonor, não podes confundir as coisas. Se pedires um Fritz Lang para sobremesa, convém que tenhas pedido uma Leni Riefenstahl para entrada, depois um Pabst gratinado, um Murnau mal passado... e já agora um Lubitch de 12 anos...
Eu quero que os nazis se fodam!
Oscar tem aprendido a vida toda a controlar a fúria, a lidar com o desamor e com a frustração. Mas desta vez, parece tudo tão mais negro. Quando olha em frente, vê o túnel, a luz ao fundo, ouve Nick Cave, deixa de ter forças, está que nem pode. A puta merece toda a culpa do mundo, que ele morra e ela não se consiga ver livre do cadáver, ou que o guarde no desespero dos anos até que o remorso desapareça com a última língua de carne seca e fétida.
O punho dele cerra-se em torno da própria garganta, Se dizes isso outra vez, mato-me já aqui!
Leonor põe a mão na anca e balouça-se, mais brejeira que escamas numa sopa de peixe. Por momentos é uma Marlene Dietrich Alfama Mix. Da sua boca as palavras brotam como pus de uma stigmata. Morre e apodrece! E se quiseres leva o mariconço da portaria a comer o Eisenstein! Biltre!
Dizendo isto, ela vira-lhe as costas e sai. Oscar fecha os olhos e concentra-se no prepúcio. [Quando era criança não podia usar cuecas de nylon, pois causavam-lhe a irritação da pele e da glande, atirando-lhe uma e outra vez a zona do pudor para uma situação de megera inflamação. Aos nove anos, a mãe quis que ele fizesse uma circuncisão, cirurgia que nunca chegou a ser efectivada, pelo facto de todos os médicos disponíveis sofrerem de avançado grau de parkinson. Mal por mal, antes um hematoma que um órgão sexual parecido com um prato de Fitas à Moda do Douro.]
Leonor ladra na cozinha, atirando à parede o que sobra da Vista Alegre: Vai à merda, filho da puta! E vais encontrar lá a Garbo e os outros mitos intemporais…
Oscar não acredita em Deus. Acredita nos homens e na boa vontade. Mas neste momento, é um facto que se está a sentir muito céptico em relação a tudo o que sabe. A ira sobe-lhe ao rosto.
Leonor, não percebes nada de cinema…
De cima da mesa, apanha o espigão de ferro forjado com que costuma espetar a lenha da lareira. Parece um arco de violino. Óscar tem um certo prazer em apertar com força o cabo e fazer dançar no ar a ponta aguçada. Então ergue o braço e, conforme se dirige à cozinha, um pensamento atroz atravessa-lhe a consciência: queixar-se-á Leonor também do potencial penetrativo daquele objecto?
Cuspiu-se de prazer, por saber a resposta.
CONTINUA (MUITO) BREVEMENTE...

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

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December 22, 2009 at 9:28 AM  

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