Saturday, February 03, 2007

Frankenstein

É curioso tentar reproduzir a tua ordem anatómica nesta estante, aproximando ou afastando os frascos que contêm as diversas partes decepadas do teu corpo. Ainda bem que as prateleiras são curtas. Posso afastar os teus olhos um do outro, inventar-te um ligeiro estrabismo, adelgaçar ou atarracar o teu corpo, trocar-te os braços pelas pernas ou até prescindir das coxas.

Os líquidos coloridos que te envolvem as partes como gelatina podem jogar melhor com os olhos, ou com a pele, com os pêlos ou com o metal dos brincos.

Posso fingir que sorris, que olhas para mim e, se fechar os olhos - ainda vejo a tua boca mexer - julgar que te ouço. À noite, posso tirar os frascos da estante, um de cada vez, e dispô-los na cama ao meu lado. Quando apago a luz, parece que ainda brilhas como antes, parece que ainda vejo o teu suor suspenso no negro pela luz do modem. De vem em quando um carro de faróis mais fortes lança os máximos através da cortina de sarja vermelha e, se eu estiver a olhar, há um segundo de desencantamento em que o vidro que nos separa se torna mais cruel que nunca.

Mas depois ele vai-se embora.

E de manhã, volto a montar-te como um puzzle na estante à frente da mesa em que como os cereais. Escolho para ti uma outra posição. Uma de sossego dengoso e realizado. Uma posição de agradecimento pelos abraços que à noite te dediquei.

Quando volto a casa, olhas-me de dentro dos frascos com um franzir de sobrancelhas mimado e temperamental. Só me dás vontade de rir. Conheço-te tão bem quanto às tuas entranhas e, no entanto, és sempre uma surpresa.

Depois de fazer o que tenho a fazer, volto a ti e temos uma conversa séria. Como nos outros dias, ninguém diz nada porque está tudo dito. A única e suprema forma de comunicarmos será sempre esta em que brico com a interactividade do teu corpo e com a inevitável democracia que envolve a tua forma, a minha forma, a tua mente e a minha. Amo-te porque sim, ou então não. Mas enquanto ninguém se decide, posso sempre trocar-te os braços pelas pernas, o peito pelo ventre, as mãos pelas orelhas, e amar-te calado, ao cintilar electrónico de todas estas luzes que tenho ligadas à corrente.