Sunday, November 20, 2005

Punhais, ainda.

Não bastava um adeus, fica a saber.

O aquário que estava trancado foi estilhaçado por uma Pandora dos infernos quando perguntaste se lhe podias tocar. É tarde, e nada disse, mas a resposta era não.

E o teu trajecto é tão parecido com o antigo, os teus olhos têm uma côr tão parecida, que até me pergundo se não serás a tua própria re-encarnação...

Tuesday, November 08, 2005

BRUCE LaBRUCE

«Bruce LaBruce is a writer, film-maker, and photographer stuck in the gulag otherwise known as Toronto, Canada. He started out as a child, then quickly moved on to the production of homo punk fanzines (J.D.s [with G.B. Jones], Dumb Bitch Deserves To Die [with Candy Parker]) and super 8 movies (Boy/Girl, I Know What It's Like To Be Dead, Bruce and Pepper Wayne Gacy's Home Movies [with Candy Parker], Slam!). These products helped to launch the so-called Homocore or Queercore movement which corrupted a whole new generation of homosexuals.»

de www.brucelabruce.com



Introdução

Neste trabalho pretendo analisar algumas fotografias de Bruce LaBruce, à luz da perspectiva benjaminiana da experiência do choque, em oposição ao conceito de aura, ambos herdados de Baudelaire. Admito que à partida a escolha deste fotógrafo estaria mais intimamente ligada ao studium e ao punctum de que fala Roland Barthes e que, provavelmente uma análise nesse sentido pudesse ser bastante interessante (pornografia com punctum?). Mas não creio que seja impossível, ainda que tenha sido precipitado da minha parte, falar da experiência do choque através deste veículo. Para esse fim, precisarei de ilustrar separadamente os conceitos de Aura, Alegoria, Experiência do Choque e, sobretudo, o de Fantasmagoria.


Noções Básicas

Por aura entende-se a identidade primeira de uma obra de arte, que lhe confere a sua autenticidade: o seu “aqui e agora”. Segundo Benjamin, a reprodutibilidade técnica da obra de arte destrói-lhe a autenticidade e a ligação da sua experiência à tradição. Como tal, transfigura-a em cadáver de obra de arte e remove-a do seu contexto espacio-temporal. Em artes como a fotografia, deixa-se de acreditar nesta inter-relação, a partir do momento em que é possível e eminente uma reprodução em série que nos faculte vários exemplares iguais da mesma obra de arte. Se se deixa de poder falar de uma relação de diferença entre cópia e original, há todo um conjunto de elos e de correspondências que se perdem. A aura só existe enquanto há correspondência.

A partir do momento em que, como espectadores, estamos conscientes do declínio da aura, surge-nos perante os olhos uma transfiguração do mundo, visão ilusória a que se chama fantasmagoria. Esse conceito surge pela necessidade de transformar a ruína da aura em imagem-de-paixão, visto que estamos a operar agora no território do fetiche, criando simultaneamente imagens-desejo da colectividade, utópicas, bem como meras tranfigurações falseadoras. A transfiguração compreendida na noção de fantasmagoria é alegórica e prende-se directa e espontaneamente ao homem contemporâneo, compreendendo a re-invenção da sua relação com tudo aquilo que o rodeia, o que pressupõe imediatamente a sua forma de ver e fazer imagens. Ultimamente, isto é a definição de Experiência do Choque.

O conceito de experiência do choque parte inicialmente de Baudelaire e é desconstruído e teorizado por Walter Benjamin como o exacto oposto da experiência autêntica. Esta, aurética, é caracterizada pela sua continuidade que, em ultima análise, se traduz na recorrente eficácia do seu próprio significado como um canal de comunicação. Por seu lado, a experiência de choque opõe-se à aura pela fantasmagoria, sendo uma experiência de fragmentos (e de fragmentação) onde a experiência autêntica é contínua, bem como uma experiência individual onde a autêntica é de continuidade.

Baudelaire é, segundo Benjamin, o primeiro a sublinhar a poesia eminente na Experiência do Choque, pela exultação da alegoria como uma forma de associar cada imagem a uma significação e vice-versa. Na verdade, o alegórico é a base de toda a arte e o único verdadeiro elo de ligação entre os motores internos da experiência de choque e os da experiência autêntica, uma vez que mexe com os significados antes de o fazer com as ramificações que os prendem aos contextos. A alegoria é como a redenção de um mundo de coisas a um só gesto, ele próprio fragmentado, revelador de tantos outros gestos fragmentários que nos caracterizam enquanto animais sociais de uma certa contemporaneidade. E falamos aqui de uma contemporaneidade quase anacrónica, mas universal na sua ruína. Baudelaire encontra, na sua obra, a estrada da transfiguração entre a ruína e a poesia, retirando à experiência autêntica o monopólio da aura e devolvendo-o parcialmente à Experiência do Choque.


O Caso LaBruce

À partida acredito que não seja pela possibilidade de reprodução exacta que uma arte como a fotografia perca a sua “aura”, acima de tudo porque o próprio conceito de aura é muito mais do que a lonjura do objecto e a sua autenticidade. Com a reprodução de um negativo, apenas se perde a singularidade do original, e reproduz-se o mesmo milésimo de segundo por 20 ou por 1000, o que só pode engrandecer a importância desse primeiro e único milésimo de olhar. Ou então, numa outra visão, têm-se o original da obra na unidade temporal em que a imagem foi captada, materializado no negativo, sendo possível fazer 20 ou 1000 “originais” iguais. Ora, isto não implica que se perca o que quer que seja do conteúdo da imagem/obra em si: Não se perde a alegoria, não se perde a correspondência, não se perde a continuidade nem a poesia e, portanto, não se pode falar de uma perda absoluta da aura. A não ser que o conceito original o pretenda, naturalmente, fazer. A obra fotográfica de Bruce LaBruce mostra com curioso prazer estético o que há de mais perverso e distorcido na nossa vivência contemporânea. E fá-lo apenas através de alegorias. A começar por uma exagerada estilização da ruína da contemporaneidade – recurso temático e estético recorrente – e terminando com a dualidade individualidade/fragmentação: LaBruce acredita no poder de “um segundo apenas” e, na sua obra fotográfica, não faz sessões continuas, chegando a preparar uma imagem durante horas, dias ou mesmo meses para depois fazer uma fotografia única, mas que seja a fotografia que tinha idealizado. Portanto, se não há ligação entre uma fotografia específica e uma outra do mesmo motivo mas noutra perspectiva, e se não está estabelecida com a audiência uma relação de autenticidade, estamos a respirar no território do fragmento, característica não aurética da experiência do choque.

Acredito portanto que, apesar do formato e da sua reprodutibilidade e de tudo o resto que identifica a obra de LaBruce como genuína experiência de choque, não podemos falar em total ausência de aura. Há aqui, portanto uma dualidade. Mas contudo, existe um factor último que classifica e centraliza melhor esta obra em relação aos dois conceitos antagónicos: a fantasmagoria.

Toda a obra fotográfica de Bruce LaBruce é profundamente fantasmagórica, no sentido Baudelairiano do termo, mostrando situações extremas e personagens extremas em atitudes extremas. Muitas vezes ele usa elementos de caricatura, bem como um profundo exagero e uma maior ironia. Todos os elementos contidos nas fotografias são, de uma ou de outra forma, contemporâneos. Como elo de ligação entre todos eles, está a sexualidade, as suas diferentes interpretações e uma sugestão mórbida de que há algo nela que não foi ainda descoberto e que é terrível.

Senão vejamos: numa fotografia, um rapaz muçulmano com uma suástica na orelha olha friamente para a câmara, envolvido num colete-de-forças demasiado subido que lhe deixa a descoberto os órgãos genitais. Noutra, um rapaz com uma tatuagem satânica no braço e um boné a dizer “Mom”, penetra um balão em forma de pónei. Numa outra, um homem sem pés masturba-se com os cotos fora das próteses, envergando uma máscara anti-gás-toxico. Numa outra, uma mulher num traje negro que parece um cruzamento de burka com hábito de madre católica sobe a saia até que se lhe veja a vagina, numa casa de banho pública. É caso para dizer que as imagens falam por si. Em alguns dos casos, nem preciso de acrescentar aqui as fotografias, de tão claras que as “imagens” não visuais podem ser, para que falemos de figuras alegóricas da experiência contemporânea. Todas essas abordagens são transfigurações de alegorias, ou fantasmagorias de ideias que, apesar de abstractas, partem de uma realidade que conhecemos muito bem, por ser presente, verdadeira e contemporânea.


Conclusão

Para concluir, posso dizer que não acredito que a aura seja impossível ou improvável na experiência do choque e acredito que ambas coexistam pacificamente na obra que analisei.

Uma obra como a de Bruce LaBruce não é de todo ímpar nem desigual de tantas outras suas contemporâneas. Tal como na obra de Nan Goldin, por exemplo, as suas fotografias preservam em si uma determinada visão de aura, a que está desprendida da noção de reprodutibilidade técnica, baseando-se em todos os outros conceitos que a este estão ligados. Por outro lado, esta obra é caracteristicamente uma experiência de choque, com provas flagrantes no uso da alegoria, apologia da ruína da contemporaneidade e, sobretudo, pela vertente fragmentária da sua abordagem.

Reúne, portanto, em si características de ambas as noções. Mas é verdadeiramente no território da fantasmagoria, da caricatura vampirizada de uma certa contemporaneidade, que a obra de Bruce LaBruce encontra a sua explicação mais profícua: como reinvenção alegórica das relações entre as coisas, em particular entre a forma de ver e de produzir imagens.

Escrito por
Carlos M. Conceição

BIBLIOGRAFIA

-BAUDELAIRE, Charles. «Le Peintre de La Vie Moderne”
-BENJAMIN, Walter. «Écrits Français» - Charles Baudelaire, Tableaux Parisiens, Trad. J. Monnoyer. Editions Gallimard, Paris, 1991.
-BENJAMIN, Walter. «Paris, Capital du XIXème Siecle: Le Livre Des Passages», Trad. Ph. Jaccottet. Editions du Seuil. Paris 1987.
-LABRUCE, Bruce. «Chronology Of Penetration». Arcade. New York.
-LABRUCE, Bruce. «The Reluctant Pornographer». Ed. Thomas Alphonsine. Troffer. New York, 1998.