Tuesday, June 21, 2005

METADE SOMBRIA


Eu vi-te descer à cave e resmungar no escuro enquanto a minha mão trémula apontava a lanterna para o vazio.
"Com certeza foi ela que as escondeu e agora não se lembra de onde pôs..." A minha pálpebra esquerda treme sozinha - sinto um arrepio quente e toco no olho com os dedos. Lembro-me que é verão.
"Não há forma de se lembrar de onde estarão?" (no momento em que engulo o ultimo bocado de açúcar ensopado no resto do café, lembro-me do dia em que abracei a minha avó pela cintura, afundando a cara na sua barriga, e acabei por fazer um golpe fundíssimo com a fivela do cinto. Vertical, como o rasto de uma lágrima, neste mesmo lado da cara. As feridas dos afectos).
Respondo "Já não sei nada!", levanto-me com dificuldade, o ar está morno, a tarde morreu, "Leva-me outra vez a casa, não me apetece estar aqui!"
Já não ouço voz nenhuma enquanto nos encaminhamos para o carro. A boca dela mexe-se mas só tenho na cabeça o trânsito distante e a vibração que vem da ponte.
Enquanto estavas no fundo da cave tive saudades tuas.
Quando ela me deixou em casa, deu a entender que queria entrar. Deixá-la ver a louça por lavar? Patético. Subi as escadas e despi-me completamente quando entrei. A sala estava abafada. Estará sempre abafada com ela por perto. Mas agora não está ninguém, chamo para ter a certeza, silêncio. Pronto. Abro a mala da câmara e saco para fora as polaróides que escondi há três dias. Duas roubei-as. As outras fui eu mesmo que as tirei, na calada. Ninguém pode saber que as tenho e é preferível que se julgue que foi a outra que as guardou. Quero estar isento de suspeita. Quem olhar para mim nunca dirá o que ainda sinto. E deito-me sobre a cama, com as polaróides frescas coladas ao corpo - feridas dos afectos, iguais à antiga. Adormeci contigo em cima, os nossos suores e quimicos reveladores tornados um só.
Sentí um calafrio quando me pareceu ouvir os teus passos a voltar a subir. Estremeci, de lanterna na mão, e fechei os olhos por um instante.

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