'There is a popular notion, that the photographer is by nature a voyeur,the last one invited to the party. But I'm not crashing; this is my party. This is my family, my history.'
Nan Goldin
Internacionalmente reconhecida como uma das mais importantes obras fotográficas americanas, a arte de Nan Goldin – imagens espontâneas e cruas dela própria e dos seus amigos – captura a essência do underground artístico de Nova York e de algumas capitais europeias, sejam elas Paris, Londres ou Berlin. Recorrentemente, a fotografia de Goldin retrata de forma próxima e honesta o glamour e o pathos das subculturas urbanas. Estruturado segundo fases temáticas, da toxicodependência ao transformismo, o seu trabalho explora a verdade indefinida das relações humanas, da vida e da morte.
A carreira de Nan Goldin começou ainda nos anos 60, quando tirava fotografias aos amigos. Fortemente influenciada pela elegância decadente dos filmes de Hollywood e da fotografia de moda europeia, estas primeiras imagens documentam a passagem da adolescência para a idade adulta.
Goldin celebra as histórias-de-vida de certos indivíduos, voltando recorrentemente a fotografá-los ao longo de várias décadas. Uma das suas séries regista a vida de uma amiga, a actriz underground Cookie Müeller, conhecida pela sua colaboração com o realizador John Waters. Essa série começa com um retrato de Cookie com o filho e acaba com ela no caixão e ele ao lado, praticamente na mesma posição. Nestes registos fotográficos não há aspecto da condição humana que seja ignorado – desde casais a fazer amor até amigos a morrerem de sida. Goldin capta os seus sujeitos em plena troca de realidades e cria testemunhos de vida.
Celebrando a exuberância dos mundos auto-construídos, a primeira série de fotografias de drag-queens de Nan Goldin, corresponde à altura em que ela partilhou um apartamento com dois travestis. Usando a câmara para retratar não só as personas de palco, as públicas, dessas duas personagens, mas também momentos mais íntimos e domésticos, estas imagens de cor saturada celebram a maquilhagem pesada, os trajes brilhantes e as poses glamorosas. Trabalhos posteriores documentariam a marcha do Gay Pride de Nova York, bem como visitas ao submundo de Tokyo e de Bangkok.
Goldin construiu o seu nome no mundo artístico, graças a The Ballad Of Sexual Dependency, primeira obra (livro e slide-show), mostrado pela primeira vez no lendário Mudd Club de Nova York. Foi em 1979. Agora clássicas, essas 700 imagens monstram-nos mulheres e homens em actividades quotidianas – deitados em camas desfeitas, falando ao telefone, vendo-se ao espelho, bebendo em pubs, sentados em táxis a voltar para casa. Acompanhado por uma escolha músical variadíssima, de Brecht a Dean Martin, The Ballad… mostra-nos também uma realidade muito mais obscura, com imagens perturbantes de mulheres decrépitas, prostitutas e toxicodependentes.
Outros trabalhos nas mesma linha se seguiram, The Other Side, Desire By Numbers, até chegar à fabulosa retrospectiva I’ll Be Your Mirror. A sequela de The Ballad…, um slide show chamado Heart Beat medita sobre os relacionamentos e o sexo. Este trabalho teve direito a uma banda sonora original composta por John Taverner e faz uso de algumas composições de Bjork, rítmicas e pulsantes, a acompanhar imagens intimas e descomprometidas de casais a fazer amor.
Caracterizadas por nunca a colocar como uma observadora externa, as fotografias de Nan Goldin mostram-nos a sua própria vida, o seu círculo social – o que ela entende por família alargada. Já em All By Myself, uma série de auto-retratos, Goldin revela-se exclusivamente, examinando com objectividade os seus relacionamentos, a sua dependência das drogas e a sua reabilitação. A imediaticidade amorfa e o sentido de envolvimento que Nan Goldin cria, assim como as suas opções de enquadramento e uso da luz e da cor, revolucionaram simultaneamente o estilo e as temáticas da fotografia contemporânea. O trabalho de Goldin cria intersecções entre os mundos da moda, a sub-cultura urbana e da fotografia propriamente dita; o que faz com que muito seja devido ao seu legado nas áreas do cinema e da moda.
Embora nem por sombras uma obra convencional ou mesmo mundana, considero o trabalho de Nan Goldin um paradigma das teorias da expressão artística estabelecidas por Gombrich. À partida, existe nas suas fotografias uma linha condutora (estética e temática) que nos transmite impreterivelmente um determinado estado de espírito, uma sensação (quase) física que sabemos reconhecer de imagem para imagem. Percepcionamos o glamour, a decadência, a morte e a melancolia em cada uma delas da mesma maneira, independentemente de se tratar de uma snapshot ocasional ou de uma fotografia mais inteligente e racionalizada. Porque não tendemos a ter contacto com as fotografias isoladas, não nos é fácil criar uma distância com as personagens, em particular com a própria Nan Goldin. Porque a passamos a “conhecer” e porque as fotografias são tão reveladoras de quem ela é, compreendemos melhor aquilo que pode ter estado a origem de uma determinada imagem. À partida estão aqui envolvidas as duas primeiras teorias: a teoria Magico-Medica, em que nos interessa acima de tudo o efeito e a emoção que a obra e a sua atmosfera provocam no espectador; e a teoria da função dramática, segundo a qual está em jogo a intenção do artista e a capacidade da obra em si de retratar um certo objecto, um certo momento ou uma certa emoção, dentro de um prisma específico. A primeira diz respeito aos signos que transmitem estados de espírito, enquanto que a segunda se refere aos símbolos que os representam. Acredito que estas duas teorias se relacionam de muito perto. Vejamos um exemplo comum para as duas.
Pessoalmente, esta fotografia transmite-me uma estranha ideia de gelo, provavelmente pelas cores, mas não de frio em particular. Há algo de opiáceo na imagem, desde as formas do fundo, que perdem a possibilidade de identificação mas parecem flores em cortinas, até à expressão facial e das mãos da personagem. O grão deixa antever um ambiente escuro e etéreo, que não é particularmente confortável mas é estimulante. Estas são as emoções que a fotografia me transmite, quer pelos signos, quer pelos símbolos. Contudo, a mesma fotografia pode ser vista à luz de uma outra teoria, a teoria da expressão artística, que é a forma como a identidade e circunstâncias da autora influenciam a sua obra e, através dela, passam para nós enquanto espectadores. A palavra chave é “comunicação”. Há pouco falei em ópio – imagine-se que essa ideia me tinha sido transmitida pelo simples facto de que Nan Goldin tinha ingerido ópio quando tirou a fotografia.
Porque esta é uma teoria da arte como auto-expressão do seu autor, torna-se muito mais directa esta abordagem na obra de Goldin quando é ela própria a matéria da imagem. Em All By Myself, ela usa o seu corpo como um marco de “antes” e “depois”. Não há nenhuma fotografia que se justifique a si própria simplesmente, não no conceito original. Assim, vemos Nan Goldin antes e depois de ser espancada pelo namorado, antes e depois de fazer amor, antes e depois de tomar banho. Esta teoria está ligada ao sintoma, logo interessam-nos as causas e as consequências.
A obra recente de Nan Goldin é uma abordagem bastante diferente daquela a que nos habituou. Interpreto-a como a obra de uma mulher que aprendeu muito a nível técnico e artístico, mas que perdeu os mais importantes elos emocionais às coisas que a rodeiam. Toda a sua obra teve pessoas como matéria prima, e essas pessoas eram os amigos mais chegados. Desde há vinte e cinco anos, tempo de vida da carreira “comercial” de Goldin, esses amigos foram morrendo, os sítio repetindo e os enquadramentos perdendo a sua justificação. Em 1998, fotografou o Stromboli, em Itália – a primeira paisagem da sua carreira -, onde antes estavam as vidas e os cadáveres dos amigos. A sua obra recente é invulgarmente bela, mas sente-se que Goldin já não pertence a ela, nem como mera voyeur. As personagens tornaram-se autónomas e a passaram a relacionar-se exclusivamente com a obra – não mais com a autora. Não digo que isto seja mau e quero sublinhar que essas acontecem ser as fotografias de Nan Goldin que mais gosto. Mas isto leva-me à justificação da quarta teoria, que vejo muito presente nesta fase da sua obra: a teoria do Feedback, na qual se dá uma maior importância à forma e à expressividade própria da obra, sendo que são elas (signos) que monitoram toda a resposta emocional da obra no seu autor. Assim sendo, estas fotografias vivem muito mais da forma e menos do seu elo à entidade criadora.
BIBLIOGRAFIA
Goldin. N. I’LL BE YOUR MIRROR. New York: Scallo Publishing. 1996.
Goldin, N. THE DEVIL’S PLAYGROUND. Boston: Phaidon Press. 2003
Woodfield, R. (ed.) GOMBRICH ON ART AND PSYCHOLOGY. Manchester and New York: Manchester University Press. 1996