Saturday, February 16, 2008

Sobre os festivais europeus de cinema!

O que vou escrever aqui é apenas uma constatação descomprometida e, como tal, inocente de qualquer intenção antropológica.

Quando se envia um filme para competição num festival europeu, ao ler os regulamentos de cada um, é incontornável que:

1. Os russos pedem "histórias que se percebam bem, sem condições de género mas de preferência comédias".

2. Os alemães separam curtas de longas, narrativa clássica de "experimental", colocam limites de duração género "não mais de 12 minutos e meio" e os prazos são do tipo "até dia 13 às 22:17", para além de que dizem quase sempre no regulamento para "só mandar boas histórias";

3. Os Coreanos querem filmes com preocupações ecológicas;

4. Os chinêses querem filmes que mostrem conflitos culturais, ou pelo menos que mostrem coisas bizarras como garfos, facas, sex-shops, fadistas, comida seca e tal e tal...

5. Os japonêses só aceitam o filme em beta-cam;

6. Os suíços dizem "curtas até 50 minutos e longas com uma hora no mínimo";

7. Não é geral, sublinho, NÃO É GERAL, mas vários festivais portuguêses dizem coisas tipo "20 vagas para competição internacional, estadia paga e o camandro" em contraponto a dizerem "uma vaga para competição nacional (contra quem?) com direito a lugar reservado na plateia".

8. Os Inglêses dizem "mandem o que quiserem como quiserem";

9. Os espanhois são tolerantes em relação a muitos detalhes e mencionam SEMPRE as festas que vai haver nos dias do festival;

10. Os holandeses gostam de sexo. Mandem porno.

Vou almoçar, até qualquer dia.

Saturday, February 03, 2007

Frankenstein

É curioso tentar reproduzir a tua ordem anatómica nesta estante, aproximando ou afastando os frascos que contêm as diversas partes decepadas do teu corpo. Ainda bem que as prateleiras são curtas. Posso afastar os teus olhos um do outro, inventar-te um ligeiro estrabismo, adelgaçar ou atarracar o teu corpo, trocar-te os braços pelas pernas ou até prescindir das coxas.

Os líquidos coloridos que te envolvem as partes como gelatina podem jogar melhor com os olhos, ou com a pele, com os pêlos ou com o metal dos brincos.

Posso fingir que sorris, que olhas para mim e, se fechar os olhos - ainda vejo a tua boca mexer - julgar que te ouço. À noite, posso tirar os frascos da estante, um de cada vez, e dispô-los na cama ao meu lado. Quando apago a luz, parece que ainda brilhas como antes, parece que ainda vejo o teu suor suspenso no negro pela luz do modem. De vem em quando um carro de faróis mais fortes lança os máximos através da cortina de sarja vermelha e, se eu estiver a olhar, há um segundo de desencantamento em que o vidro que nos separa se torna mais cruel que nunca.

Mas depois ele vai-se embora.

E de manhã, volto a montar-te como um puzzle na estante à frente da mesa em que como os cereais. Escolho para ti uma outra posição. Uma de sossego dengoso e realizado. Uma posição de agradecimento pelos abraços que à noite te dediquei.

Quando volto a casa, olhas-me de dentro dos frascos com um franzir de sobrancelhas mimado e temperamental. Só me dás vontade de rir. Conheço-te tão bem quanto às tuas entranhas e, no entanto, és sempre uma surpresa.

Depois de fazer o que tenho a fazer, volto a ti e temos uma conversa séria. Como nos outros dias, ninguém diz nada porque está tudo dito. A única e suprema forma de comunicarmos será sempre esta em que brico com a interactividade do teu corpo e com a inevitável democracia que envolve a tua forma, a minha forma, a tua mente e a minha. Amo-te porque sim, ou então não. Mas enquanto ninguém se decide, posso sempre trocar-te os braços pelas pernas, o peito pelo ventre, as mãos pelas orelhas, e amar-te calado, ao cintilar electrónico de todas estas luzes que tenho ligadas à corrente.

Sunday, July 16, 2006

fantasma

Eram brazas, as minhas, só moedas de luz no calo da mão e a baba do dia sentindo escorrente na alma a lava que disseste. O dedo recurvado como uma raiz de mandioca à frente do meu nariz que pingava. Susto? Mais que nunca são as minhas mãos as calejadas, São as minhas mãos as condecoradas de vermelho. Mais do que nunca, Susto? São as minhas mãos a ser vassalas do teu corpo, como se não bastasse os olhos serem refens dos teus e a boca refem da mente que te é prisioneira. Perigo de morte, a forma como fechaste os olhos. E o dourado da tua pele custa-me tanto a ver torrar como açúcar mascavado sobre o verão da lingua. Perigosa a forma como sorris, por mero favor, àquilo que eu digo. Susto. Eram brazas, as minhas, só moedas de luz no calo da mão e a baba do dia sentindo escorrente na alma a lava que disseste. Se morresses eu deixava-te flutuar à deriva, e punha-te flores no peito. Não te deixava ir sem ficar a ver e, quando estivesses longe demais para eu te distinguir da água, podia sorrir sozinho por saber que era meu para sempre o segundo em que te foste. Que o podia vender aos paparazzi ou escrevê-lo numa tshirt... Mas acho que o mundo tem muito mais graça contigo por aí, E a minha vida é muito mais a minha vida se, apesar de existires e sorrires dessa maneira, me rejeitares as chamadas e recusares os cafés - daquela maneira linda que só tu tens...

Thursday, June 08, 2006

NAN GOLDIN À LUZ DE GOMBRICH



'There is a popular notion, that the photographer is by nature a voyeur,the last one invited to the party. But I'm not crashing; this is my party. This is my family, my history.'

Nan Goldin

Internacionalmente reconhecida como uma das mais importantes obras fotográficas americanas, a arte de Nan Goldin – imagens espontâneas e cruas dela própria e dos seus amigos – captura a essência do underground artístico de Nova York e de algumas capitais europeias, sejam elas Paris, Londres ou Berlin. Recorrentemente, a fotografia de Goldin retrata de forma próxima e honesta o glamour e o pathos das subculturas urbanas. Estruturado segundo fases temáticas, da toxicodependência ao transformismo, o seu trabalho explora a verdade indefinida das relações humanas, da vida e da morte.

A carreira de Nan Goldin começou ainda nos anos 60, quando tirava fotografias aos amigos. Fortemente influenciada pela elegância decadente dos filmes de Hollywood e da fotografia de moda europeia, estas primeiras imagens documentam a passagem da adolescência para a idade adulta.

Goldin celebra as histórias-de-vida de certos indivíduos, voltando recorrentemente a fotografá-los ao longo de várias décadas. Uma das suas séries regista a vida de uma amiga, a actriz underground Cookie Müeller, conhecida pela sua colaboração com o realizador John Waters. Essa série começa com um retrato de Cookie com o filho e acaba com ela no caixão e ele ao lado, praticamente na mesma posição. Nestes registos fotográficos não há aspecto da condição humana que seja ignorado – desde casais a fazer amor até amigos a morrerem de sida. Goldin capta os seus sujeitos em plena troca de realidades e cria testemunhos de vida.

Celebrando a exuberância dos mundos auto-construídos, a primeira série de fotografias de drag-queens de Nan Goldin, corresponde à altura em que ela partilhou um apartamento com dois travestis. Usando a câmara para retratar não só as personas de palco, as públicas, dessas duas personagens, mas também momentos mais íntimos e domésticos, estas imagens de cor saturada celebram a maquilhagem pesada, os trajes brilhantes e as poses glamorosas. Trabalhos posteriores documentariam a marcha do Gay Pride de Nova York, bem como visitas ao submundo de Tokyo e de Bangkok.

Goldin construiu o seu nome no mundo artístico, graças a The Ballad Of Sexual Dependency, primeira obra (livro e slide-show), mostrado pela primeira vez no lendário Mudd Club de Nova York. Foi em 1979. Agora clássicas, essas 700 imagens monstram-nos mulheres e homens em actividades quotidianas – deitados em camas desfeitas, falando ao telefone, vendo-se ao espelho, bebendo em pubs, sentados em táxis a voltar para casa. Acompanhado por uma escolha músical variadíssima, de Brecht a Dean Martin, The Ballad… mostra-nos também uma realidade muito mais obscura, com imagens perturbantes de mulheres decrépitas, prostitutas e toxicodependentes.

Outros trabalhos nas mesma linha se seguiram, The Other Side, Desire By Numbers, até chegar à fabulosa retrospectiva I’ll Be Your Mirror. A sequela de The Ballad…, um slide show chamado Heart Beat medita sobre os relacionamentos e o sexo. Este trabalho teve direito a uma banda sonora original composta por John Taverner e faz uso de algumas composições de Bjork, rítmicas e pulsantes, a acompanhar imagens intimas e descomprometidas de casais a fazer amor.

Caracterizadas por nunca a colocar como uma observadora externa, as fotografias de Nan Goldin mostram-nos a sua própria vida, o seu círculo social – o que ela entende por família alargada. Já em All By Myself, uma série de auto-retratos, Goldin revela-se exclusivamente, examinando com objectividade os seus relacionamentos, a sua dependência das drogas e a sua reabilitação. A imediaticidade amorfa e o sentido de envolvimento que Nan Goldin cria, assim como as suas opções de enquadramento e uso da luz e da cor, revolucionaram simultaneamente o estilo e as temáticas da fotografia contemporânea. O trabalho de Goldin cria intersecções entre os mundos da moda, a sub-cultura urbana e da fotografia propriamente dita; o que faz com que muito seja devido ao seu legado nas áreas do cinema e da moda.

Embora nem por sombras uma obra convencional ou mesmo mundana, considero o trabalho de Nan Goldin um paradigma das teorias da expressão artística estabelecidas por Gombrich. À partida, existe nas suas fotografias uma linha condutora (estética e temática) que nos transmite impreterivelmente um determinado estado de espírito, uma sensação (quase) física que sabemos reconhecer de imagem para imagem. Percepcionamos o glamour, a decadência, a morte e a melancolia em cada uma delas da mesma maneira, independentemente de se tratar de uma snapshot ocasional ou de uma fotografia mais inteligente e racionalizada. Porque não tendemos a ter contacto com as fotografias isoladas, não nos é fácil criar uma distância com as personagens, em particular com a própria Nan Goldin. Porque a passamos a “conhecer” e porque as fotografias são tão reveladoras de quem ela é, compreendemos melhor aquilo que pode ter estado a origem de uma determinada imagem. À partida estão aqui envolvidas as duas primeiras teorias: a teoria Magico-Medica, em que nos interessa acima de tudo o efeito e a emoção que a obra e a sua atmosfera provocam no espectador; e a teoria da função dramática, segundo a qual está em jogo a intenção do artista e a capacidade da obra em si de retratar um certo objecto, um certo momento ou uma certa emoção, dentro de um prisma específico. A primeira diz respeito aos signos que transmitem estados de espírito, enquanto que a segunda se refere aos símbolos que os representam. Acredito que estas duas teorias se relacionam de muito perto. Vejamos um exemplo comum para as duas.

Pessoalmente, esta fotografia transmite-me uma estranha ideia de gelo, provavelmente pelas cores, mas não de frio em particular. Há algo de opiáceo na imagem, desde as formas do fundo, que perdem a possibilidade de identificação mas parecem flores em cortinas, até à expressão facial e das mãos da personagem. O grão deixa antever um ambiente escuro e etéreo, que não é particularmente confortável mas é estimulante. Estas são as emoções que a fotografia me transmite, quer pelos signos, quer pelos símbolos. Contudo, a mesma fotografia pode ser vista à luz de uma outra teoria, a teoria da expressão artística, que é a forma como a identidade e circunstâncias da autora influenciam a sua obra e, através dela, passam para nós enquanto espectadores. A palavra chave é “comunicação”. Há pouco falei em ópio – imagine-se que essa ideia me tinha sido transmitida pelo simples facto de que Nan Goldin tinha ingerido ópio quando tirou a fotografia.

Porque esta é uma teoria da arte como auto-expressão do seu autor, torna-se muito mais directa esta abordagem na obra de Goldin quando é ela própria a matéria da imagem. Em All By Myself, ela usa o seu corpo como um marco de “antes” e “depois”. Não há nenhuma fotografia que se justifique a si própria simplesmente, não no conceito original. Assim, vemos Nan Goldin antes e depois de ser espancada pelo namorado, antes e depois de fazer amor, antes e depois de tomar banho. Esta teoria está ligada ao sintoma, logo interessam-nos as causas e as consequências.

A obra recente de Nan Goldin é uma abordagem bastante diferente daquela a que nos habituou. Interpreto-a como a obra de uma mulher que aprendeu muito a nível técnico e artístico, mas que perdeu os mais importantes elos emocionais às coisas que a rodeiam. Toda a sua obra teve pessoas como matéria prima, e essas pessoas eram os amigos mais chegados. Desde há vinte e cinco anos, tempo de vida da carreira “comercial” de Goldin, esses amigos foram morrendo, os sítio repetindo e os enquadramentos perdendo a sua justificação. Em 1998, fotografou o Stromboli, em Itália – a primeira paisagem da sua carreira -, onde antes estavam as vidas e os cadáveres dos amigos. A sua obra recente é invulgarmente bela, mas sente-se que Goldin já não pertence a ela, nem como mera voyeur. As personagens tornaram-se autónomas e a passaram a relacionar-se exclusivamente com a obra – não mais com a autora. Não digo que isto seja mau e quero sublinhar que essas acontecem ser as fotografias de Nan Goldin que mais gosto. Mas isto leva-me à justificação da quarta teoria, que vejo muito presente nesta fase da sua obra: a teoria do Feedback, na qual se dá uma maior importância à forma e à expressividade própria da obra, sendo que são elas (signos) que monitoram toda a resposta emocional da obra no seu autor. Assim sendo, estas fotografias vivem muito mais da forma e menos do seu elo à entidade criadora.


BIBLIOGRAFIA

Goldin. N. I’LL BE YOUR MIRROR. New York: Scallo Publishing. 1996.

Goldin, N. THE DEVIL’S PLAYGROUND. Boston: Phaidon Press. 2003

Woodfield, R. (ed.) GOMBRICH ON ART AND PSYCHOLOGY. Manchester and New York: Manchester University Press. 1996

GET WARNED!


foto: Charlie White, "Champion"
heat waves not far the edge, approaching zombie tigers leaking wax, murdox wanting any stuff from any pocket, teachers waving lit pencils over your hair, cablenet bills arriving twice their need, unhappy girl-next-door attemts suicide, mashed potato displays pink dead worm, meat is murder, love is in the air but wind is strong, my sink starts to move by itself, same faces, same dishes, severe earthquake expected for two centuries, you pay for culture but trash is free, fame is a pill you take but genious can easily swallow you, they say aids is out of fashion, murder is media, death sells all tickets, love is lame, hair is more important than talk, laxatives for the brain cause over publication in portugal, clowns and stars have never been together on tv till now, five cellphones a year means too many knives on my throat, dallesandro watches from the wall his mocking smile says it all, cinematic flees rent a flat in my sweater at school, coffee machine takes all and gives none, orgy days are over, rain, rain, thunder can be sweat, boys worship nerve endings, whatever, same old, same old...

Sunday, November 20, 2005

Punhais, ainda.

Não bastava um adeus, fica a saber.

O aquário que estava trancado foi estilhaçado por uma Pandora dos infernos quando perguntaste se lhe podias tocar. É tarde, e nada disse, mas a resposta era não.

E o teu trajecto é tão parecido com o antigo, os teus olhos têm uma côr tão parecida, que até me pergundo se não serás a tua própria re-encarnação...

Tuesday, November 08, 2005

BRUCE LaBRUCE

«Bruce LaBruce is a writer, film-maker, and photographer stuck in the gulag otherwise known as Toronto, Canada. He started out as a child, then quickly moved on to the production of homo punk fanzines (J.D.s [with G.B. Jones], Dumb Bitch Deserves To Die [with Candy Parker]) and super 8 movies (Boy/Girl, I Know What It's Like To Be Dead, Bruce and Pepper Wayne Gacy's Home Movies [with Candy Parker], Slam!). These products helped to launch the so-called Homocore or Queercore movement which corrupted a whole new generation of homosexuals.»

de www.brucelabruce.com



Introdução

Neste trabalho pretendo analisar algumas fotografias de Bruce LaBruce, à luz da perspectiva benjaminiana da experiência do choque, em oposição ao conceito de aura, ambos herdados de Baudelaire. Admito que à partida a escolha deste fotógrafo estaria mais intimamente ligada ao studium e ao punctum de que fala Roland Barthes e que, provavelmente uma análise nesse sentido pudesse ser bastante interessante (pornografia com punctum?). Mas não creio que seja impossível, ainda que tenha sido precipitado da minha parte, falar da experiência do choque através deste veículo. Para esse fim, precisarei de ilustrar separadamente os conceitos de Aura, Alegoria, Experiência do Choque e, sobretudo, o de Fantasmagoria.


Noções Básicas

Por aura entende-se a identidade primeira de uma obra de arte, que lhe confere a sua autenticidade: o seu “aqui e agora”. Segundo Benjamin, a reprodutibilidade técnica da obra de arte destrói-lhe a autenticidade e a ligação da sua experiência à tradição. Como tal, transfigura-a em cadáver de obra de arte e remove-a do seu contexto espacio-temporal. Em artes como a fotografia, deixa-se de acreditar nesta inter-relação, a partir do momento em que é possível e eminente uma reprodução em série que nos faculte vários exemplares iguais da mesma obra de arte. Se se deixa de poder falar de uma relação de diferença entre cópia e original, há todo um conjunto de elos e de correspondências que se perdem. A aura só existe enquanto há correspondência.

A partir do momento em que, como espectadores, estamos conscientes do declínio da aura, surge-nos perante os olhos uma transfiguração do mundo, visão ilusória a que se chama fantasmagoria. Esse conceito surge pela necessidade de transformar a ruína da aura em imagem-de-paixão, visto que estamos a operar agora no território do fetiche, criando simultaneamente imagens-desejo da colectividade, utópicas, bem como meras tranfigurações falseadoras. A transfiguração compreendida na noção de fantasmagoria é alegórica e prende-se directa e espontaneamente ao homem contemporâneo, compreendendo a re-invenção da sua relação com tudo aquilo que o rodeia, o que pressupõe imediatamente a sua forma de ver e fazer imagens. Ultimamente, isto é a definição de Experiência do Choque.

O conceito de experiência do choque parte inicialmente de Baudelaire e é desconstruído e teorizado por Walter Benjamin como o exacto oposto da experiência autêntica. Esta, aurética, é caracterizada pela sua continuidade que, em ultima análise, se traduz na recorrente eficácia do seu próprio significado como um canal de comunicação. Por seu lado, a experiência de choque opõe-se à aura pela fantasmagoria, sendo uma experiência de fragmentos (e de fragmentação) onde a experiência autêntica é contínua, bem como uma experiência individual onde a autêntica é de continuidade.

Baudelaire é, segundo Benjamin, o primeiro a sublinhar a poesia eminente na Experiência do Choque, pela exultação da alegoria como uma forma de associar cada imagem a uma significação e vice-versa. Na verdade, o alegórico é a base de toda a arte e o único verdadeiro elo de ligação entre os motores internos da experiência de choque e os da experiência autêntica, uma vez que mexe com os significados antes de o fazer com as ramificações que os prendem aos contextos. A alegoria é como a redenção de um mundo de coisas a um só gesto, ele próprio fragmentado, revelador de tantos outros gestos fragmentários que nos caracterizam enquanto animais sociais de uma certa contemporaneidade. E falamos aqui de uma contemporaneidade quase anacrónica, mas universal na sua ruína. Baudelaire encontra, na sua obra, a estrada da transfiguração entre a ruína e a poesia, retirando à experiência autêntica o monopólio da aura e devolvendo-o parcialmente à Experiência do Choque.


O Caso LaBruce

À partida acredito que não seja pela possibilidade de reprodução exacta que uma arte como a fotografia perca a sua “aura”, acima de tudo porque o próprio conceito de aura é muito mais do que a lonjura do objecto e a sua autenticidade. Com a reprodução de um negativo, apenas se perde a singularidade do original, e reproduz-se o mesmo milésimo de segundo por 20 ou por 1000, o que só pode engrandecer a importância desse primeiro e único milésimo de olhar. Ou então, numa outra visão, têm-se o original da obra na unidade temporal em que a imagem foi captada, materializado no negativo, sendo possível fazer 20 ou 1000 “originais” iguais. Ora, isto não implica que se perca o que quer que seja do conteúdo da imagem/obra em si: Não se perde a alegoria, não se perde a correspondência, não se perde a continuidade nem a poesia e, portanto, não se pode falar de uma perda absoluta da aura. A não ser que o conceito original o pretenda, naturalmente, fazer. A obra fotográfica de Bruce LaBruce mostra com curioso prazer estético o que há de mais perverso e distorcido na nossa vivência contemporânea. E fá-lo apenas através de alegorias. A começar por uma exagerada estilização da ruína da contemporaneidade – recurso temático e estético recorrente – e terminando com a dualidade individualidade/fragmentação: LaBruce acredita no poder de “um segundo apenas” e, na sua obra fotográfica, não faz sessões continuas, chegando a preparar uma imagem durante horas, dias ou mesmo meses para depois fazer uma fotografia única, mas que seja a fotografia que tinha idealizado. Portanto, se não há ligação entre uma fotografia específica e uma outra do mesmo motivo mas noutra perspectiva, e se não está estabelecida com a audiência uma relação de autenticidade, estamos a respirar no território do fragmento, característica não aurética da experiência do choque.

Acredito portanto que, apesar do formato e da sua reprodutibilidade e de tudo o resto que identifica a obra de LaBruce como genuína experiência de choque, não podemos falar em total ausência de aura. Há aqui, portanto uma dualidade. Mas contudo, existe um factor último que classifica e centraliza melhor esta obra em relação aos dois conceitos antagónicos: a fantasmagoria.

Toda a obra fotográfica de Bruce LaBruce é profundamente fantasmagórica, no sentido Baudelairiano do termo, mostrando situações extremas e personagens extremas em atitudes extremas. Muitas vezes ele usa elementos de caricatura, bem como um profundo exagero e uma maior ironia. Todos os elementos contidos nas fotografias são, de uma ou de outra forma, contemporâneos. Como elo de ligação entre todos eles, está a sexualidade, as suas diferentes interpretações e uma sugestão mórbida de que há algo nela que não foi ainda descoberto e que é terrível.

Senão vejamos: numa fotografia, um rapaz muçulmano com uma suástica na orelha olha friamente para a câmara, envolvido num colete-de-forças demasiado subido que lhe deixa a descoberto os órgãos genitais. Noutra, um rapaz com uma tatuagem satânica no braço e um boné a dizer “Mom”, penetra um balão em forma de pónei. Numa outra, um homem sem pés masturba-se com os cotos fora das próteses, envergando uma máscara anti-gás-toxico. Numa outra, uma mulher num traje negro que parece um cruzamento de burka com hábito de madre católica sobe a saia até que se lhe veja a vagina, numa casa de banho pública. É caso para dizer que as imagens falam por si. Em alguns dos casos, nem preciso de acrescentar aqui as fotografias, de tão claras que as “imagens” não visuais podem ser, para que falemos de figuras alegóricas da experiência contemporânea. Todas essas abordagens são transfigurações de alegorias, ou fantasmagorias de ideias que, apesar de abstractas, partem de uma realidade que conhecemos muito bem, por ser presente, verdadeira e contemporânea.


Conclusão

Para concluir, posso dizer que não acredito que a aura seja impossível ou improvável na experiência do choque e acredito que ambas coexistam pacificamente na obra que analisei.

Uma obra como a de Bruce LaBruce não é de todo ímpar nem desigual de tantas outras suas contemporâneas. Tal como na obra de Nan Goldin, por exemplo, as suas fotografias preservam em si uma determinada visão de aura, a que está desprendida da noção de reprodutibilidade técnica, baseando-se em todos os outros conceitos que a este estão ligados. Por outro lado, esta obra é caracteristicamente uma experiência de choque, com provas flagrantes no uso da alegoria, apologia da ruína da contemporaneidade e, sobretudo, pela vertente fragmentária da sua abordagem.

Reúne, portanto, em si características de ambas as noções. Mas é verdadeiramente no território da fantasmagoria, da caricatura vampirizada de uma certa contemporaneidade, que a obra de Bruce LaBruce encontra a sua explicação mais profícua: como reinvenção alegórica das relações entre as coisas, em particular entre a forma de ver e de produzir imagens.

Escrito por
Carlos M. Conceição

BIBLIOGRAFIA

-BAUDELAIRE, Charles. «Le Peintre de La Vie Moderne”
-BENJAMIN, Walter. «Écrits Français» - Charles Baudelaire, Tableaux Parisiens, Trad. J. Monnoyer. Editions Gallimard, Paris, 1991.
-BENJAMIN, Walter. «Paris, Capital du XIXème Siecle: Le Livre Des Passages», Trad. Ph. Jaccottet. Editions du Seuil. Paris 1987.
-LABRUCE, Bruce. «Chronology Of Penetration». Arcade. New York.
-LABRUCE, Bruce. «The Reluctant Pornographer». Ed. Thomas Alphonsine. Troffer. New York, 1998.

Wednesday, September 07, 2005

MENSAGEM QUE NÃO MANDO

"Gostava apenas que me tivesses visto como algo mais que uma sombra na noite."