Monday, July 25, 2005

V I G I L Â N C I A: Antonioni e O Eclipse



Diz Roland Barthes de Antonioni, que a sua vigilância de artista é de carácter amoroso: a vigilância do desejo.

[Esta afirmação data de 1979, ano em que Antonioni, um dos mais sofisticados, vanguardistas e modernos cineastas dos anos 60, já era ironicamente considerado demodé. Em parte, graças aos próprios sixties – era de inovação artística em que fazer filmes ambiciosos sobre o Nada parecia simultaneamente possível e sedutor – e à marca que impuseram às décadas seguintes. Não fossem as questões metafísicas do mundo tão melhor toleradas quando o glamour desse mundo é mais evidente.]

A par de Godard, Michelangelo Antonioni re-definiu o cinema e traçou as directrizes principais de uma nova linguagem fílmica que surgiu exactamente com a entrada na década de sessenta. L’Avventura surge um ano depois de À Bout De Soufle; La Notte, no mesmo ano que Crónica de Verão e Ultimo Ano Em Marienbad; L’Eclisse aparece em 1962, ano de Vivre Sa Vie e de Anjo Exterminador, enquanto o ano seguinte é o de Muriel e de O Desprezo. Uma época, em suma, em que as grandes preocupações e as inovações narrativas surgem lado a lado.
Esta trilogia de Antonioni, constitui um trabalho de reflexão contínuo, ainda que composto por partes perfeitamente autónomas. Elementos recorrentes nos três filmes são a arte, o negócio, o erotismo e a alienação emocional do mundo moderno. É, contudo, em O Eclipse que esta vaga trilogia atinge um clímax (quer em desafio das convenções narrativas quer na deliberada poesia da ausência e do desejo) ainda que tenham sido os dois filmes anteriores que estabeleceram internacionalmente a linguagem e as regras estéticas e narrativas do seu autor.
Aquilo que vemos acontecer em L’Eclisse é, nada mais nada menos que uma concentração enorme de “visão antonioniana”, como se nada do que o ecrã nos dá como espectadores fosse de facto “real”, mas sim a assumida representação da forma como ele, Antonioni, vê o mundo. Esta é uma característica que não lhe é, a meu ver, exclusiva. Godard, por exemplo, criou o seu estilo, a sua identidade e uma linguagem que não tem, nem poderá ter continuação.
Este universo que Antonioni criou, desde meados dos anos 50, é flagrantemente seu, muito distinto do universo da representação cinematográfica – em que é comum haver um retrato standard de um mundo igualmente padronizado, ainda que subjugado à percepção do seu autor. Antonioni, em L’Eclisse, contraria esta fórmula, inventando um mundo seu, fechado, em que não se fazem concessões: nem pela linguagem, nem pelo estilo, nem pelas personagens. E muito menos pelo espectáculo em si, ou pela narrativa convencional.
É importante salientar que L’Eclisse foi a última obra que Antonioni filmou a preto-e-branco. Mas, indo além desta constatação, poder-se-á dizer que é um filme em “branco”, tal como L’Avventura em oposição a La Notte, que é um filme com predominância do negro. Nestes três filmes, ele procura uma nova direcção, prosseguindo a pesquisa que tinha começado anos antes com Il Grido, e radicaliza a sua tentativa de ultrapassagem do storytelling tradicional, da representação de personagens com quem o espectador se possa identificar e da caracterização de espaços físicos e objectos como sendo tão ou mais importantes que as próprias personagens que definem.

O mistério central de A Aventura – o desaparecimento da personagem principal numa ilha vulcânica, durante um cruzeiro de luxo – nunca chega a ser resolvido. O foco narrativo muda a meio do filme, centrando-se na melhor amiga da protagonista, antecipando a táctica de choque de Psycho, em que Vera Miles “substitui” Janet Leigh no protagonismo. Já A Noite, cobrindo um intervalo temporal de menos de um dia, possui uma forma bastante mais convencional, ainda que muito do que sucede por metade do filme pareça, à primeira vista, mera deriva narrativa sem direcção específica. Já o caso de O Eclipse funciona como uma assunção de respostas ou a clarificação das ideias que, precedentemente, pareciam mero abstraccionismo. Começamos com o final de um relacionamento e acabamos com a aparente condenação de outro, atravessando um delicado entrançar de cenas que parecem, também elas, uma espécie de deriva narrativa, ideia que é reforçada pelo facto de nenhuma das personagens centrais aparecer nos sete minutos que dura a sequência final – uma das mais poderosas de toda a obra de Antonioni. Mas é certo que este clímax é revelador da preocupação do autor com a substituição do ser humano por espaços e por objectos, já revelada por exemplo na visita à ilha vulcânica em L’Avventura ou mesmo na cena com o helicóptero à janela do hospital, no início de La Notte; ou mesmo ainda na primeira cena do próprio L’Eclisse, em que todos os pequenos objectos na sala, ou a torre em forma de cogumelo que se vê pela janela, servem para deslocar ou descontextualizar as personagens depois do seu rompimento. Nos três casos, há uma suspensão entre aquilo que no início parece divagação narrativa mas que pode muito bem vir a revelar-se uma bifurcação narrativa num sentido inicialmente imprevisto, para longe das personagens mas mais fundo nos seus espaços. Antonioni contraria a ordem deste raciocínio no plano de abertura do filme, em que uma panorâmica revela-nos que um dos objectos dispostos sobre uma mesa, entre livros, fotografias e chávenas de café, acaba por ser nada mais que o cotovelo de um homem.
Em contradição, muito embora Antonioni quase nunca seja considerado um realizador de actores (independentemente do que isso queira dizer), o filme centra-se tanto nos dois protagonistas que acaba por hiperbolizar os espaços e, em particular, a sequência final, por via da angústia que a ausência deles provoca. Sobretudo porque o espaço que agora vemos vazio, os objectos que agora vemos sozinhos, não aqueles por que eles circulavam durante o resto do filme. A química física entre eles representa uma reversão significativa na obra de Antonioni, de uma observação de Eros como uma espécie de mal contemporâneo para uma apreciação em tudo mais reservada e menos comprometida. Como ilustração do primeiro caso, vejam-se o encontro de Sandro com uma prostituta, no final de L’Avventura, ou mesmo o de Giovanni com uma ninfomaníaca, no início de La Notte. Em L’Eclisse existe uma espécie de apologia da atracção física como motor único da relação entre duas pessoas, com menos culpa e menos pessimismo, colocando muito menos a ideia do capitalismo como um veículo para o compromisso e para a corrupção. Ainda que o filme que se seguiu, O Deserto Vermelho (que se centra na mais neurótica de todas as suas personagens) seja um significativo retrocesso nesta ideia de celebração do erotismo, e que a sua visão se tenha mantido critica em relação aos motores sociais capitalistas como organismos condutores à destruição moral por via física (em Zabriskie Point e The Passenger), é em L’Eclisse que surge pela primeira vez o outro lado da medalha desta visão Antonionina, um de apreciação e de agrado, como o que é dado à vitalidade dos apostadores da bolsa, ou às paisagens industriais de Il Deserto Rosso.
Todos os filmes de Antonioni são sobre o amor ou, mais concretamente, sobre a impossibilidade do amor. Neste ele filma as cenas de amor de forma única: há particular predominância do uso das mãos, como por exemplo na cena do sofá, em que as personagens estão escondidas pelas costas do móvel, pelo que só lhes vemos os braços e as mãos. O erotismo é latente mas nunca obvio, substituído por jogos, apostando numa tensão quase invisível como habitual nos seus filmes.
Em L’Eclisse, Vittoria, tradutora suburbana em Roma, termina a sua relação com um escritor, Riccardo, e envolve-se com Piero, um apostador da bolsa empregado pela mãe dela. Verifica-se que não existe neurose no casal protagonista: Piero é ambicioso e determinado, mas nunca o seu trabalho na bolsa ou a sua incansável vida amorosa são vistos como uma doença, sendo que Antonioni os coreografa vibrantemente a ambos. O mesmo acontece com o retrato de Vittoria – o realizador repete um ângulo de câmara para a fazer rimar com uma conquista anterior de Piero. Apesar de volátil e indecisa sobre os seus impulsos, ele segue-a com precisão tanto voyeurista quanto antropológica, sem nunca retratar esses impulsos como decadentes ou desesperados (como eram as personagens de L’Avventura), por exemplo nas cenas em que ela imita uma africana ou em que embarca numa avioneta, num momento de paz quase estática.
Os primeiros filmes de Michelangelo Antonioni eram documentários, facto que não deixa de ser relevante quando descobrimos que quase toda a figuração na bolsa de valores em L’Eclisse é composta por apostadores verdadeiros. Parte do que torna essas cenas tão apaixonantes é o estilo de composição do enquadramento, usando as margem e os cantos do fotograma, e a forma como as acções se sobrepõe, num mesmo plano fixo, entre diferente secções da multidão que vemos – muito ao estilo do que faz Jacques Tati na sequência do restaurante em Playtime.
Curiosamente, Antonioni não procura naturalidade nos seus actores, pedindo-lhe muitas vezes para fazer uma cena com ritmos diferentes ou contrariando a lógica da progressão dramática de cada personagem. Como resultado, acaba por desafiar as regras da representação e as expectativas que temos em relação aos actores que vemos. Isto acontece sobretudo com actores homens, para quem também os diálogos não são, na maioria dos casos, naturais. Em resumo, geometriza-os, como faz aos frames, transforma-os em elementos da paisagem. Este fenómeno foi muitas vezes apontado como uma falha sua como realizador, muito embora seja uma interessante característica da sua filmografia e uma opção estilística ímpar. Em Antonioni, é nas personagens femininas que reside toda a vitalidade emocional e a procura de algo que não é nunca concreto, mas que é passível de ser interpretado de várias maneiras.
A forma como personagens e espaço são objectificados, assim como a ausência de movimento e o desolamento dos locais é obviamente metafórica, prolongando a desertificação das emoções das personagens. O espaço está lá antes de nós, reduzindo-nos a visitantes. Poder-se-á falar em alienação, mais concretamente em relação ao mundo que nos rodeia, pois já não experimentamos o sentimento de empatia que o cinema nos oferecia antes, que nos fazia viver como humanos – somos, neste ponto de vista, novos aliens. E é curioso constatar que L’Eclisse (tal como Zabriskie Point e e The Passenger) pontua-se recorrentemente de elementos de ficção científica, o que leva a metáfora num sentido inesperado. Começando com a visão do edifício em forma de cogumelo que, não obstante os habitantes de Roma já terem visto, é completamente inesperado para os restantes espectadores, parecendo um estranho objecto futurista, um disco voador ou uma nuvem atómica; e continuando em relação à própria concepção do título – O Eclipse é, pode dizer-se um eclipse de sentimentos, a negação da partilha das emoções numa sociedade industrial.
Apenas um grande ecrã pode fazer justiça à magistralidade da mise-en-scéne de Miguelangelo Antonioni. É muitas vezes o sentido de monumentalidade que está na base da sua concepção visual de filme para filme, quer estejamos a olhar para uma ventoinha eléctrica às voltas ao amanhecer, quer para um carro com um cadáver a ser puxado de um rio, quer para um casal aninhado num sofá ou para uma multidão de especuladores aos gritos. Até o não-reconhecimento dos espectadores pode jogar a favor da dinâmica geral de uma cena: figuras com parecenças momentâneas com Piero e Vittoria passam pelo enquadramento, no local onde se deveriam encontrar, provocando-nos com possibilidades. Aquilo a que Barthes chama “vigilância do desejo” torna-se a nossa vigilância – mas uma de carácter permanente e insatisfeito.

Seria curioso visualizar de seguida os finais de todos os filmes de Michelangelo Antonioni e estudá-los comparativamente. O de L’Eclisse é, certamente, um dos mais famosos, juntamente com o de The Passenger, estabelecendo-se como uma forma quase insólita de arrematar a história do ponto de vista da própria iconografia do filme, usando planos (maioritariamente fixos) que resumem através dos espaços vazios e dos objectos tudo aquilo que aconteceu na segunda metade do filme. É uma espécie de síntese final que se orienta por duas perspectivas diversas: uma narrativa (iconográfica) e uma ambiental ou paisagística. Trata-se, num certo ponto de vista, de um final implacável, culminando com a imagem da luz de um candeeiro de rua fazendo lembrar um eclipse solar. É possível falar de um eclipse do realismo quando vemos o plano final deste filme – o desaparecimento da luz que ilumina o ecrã de cinema, que o faz aproximar-se da realidade – em que a luz do candeeiro inunda a sala e se transforma em tenebrosa escuridão assim que a palavra “fine” surge.
Num todo, o cinema de Antonioni tenta explorar territórios experimentais, com a peculiaridade de o conseguir fazer dentro de um contexto de cinema mainstream, sem nunca tombar para o avant-garde. Este eclipse poderá também ser a tendência para a abstracção e para o vazio, que está para além da noção concreta de imagem realista. A sequência final de L’Eclisse encontra o seu parente mais próximo na sequência final de Zabriskie Point, em que todos os elementos quotidianos que caracterizam a história são por ela levados a um ponto quase invisível em que perdem a possibilidade de ser vistos como concretos, passando a pertencer a um universo paralelo, estático e abstracto.
Às vezes parece que Antonioni extrai a essência da vida quotidiana, a das ruas, que serve de pano de fundo a um filme ou a uma história, mostrando-a de forma bruta e não diluída, deixando-a passar para primeiro plano até que nos ameace e oprima. A implicação está em que, por trás de cada uma destas histórias, há um local e uma ausência, um mistério ou uma incerteza à espera de dominar subitamente, assassinando a continuação da história antes que todas as respostas estejam dadas. Contudo, combinando o espaço com a ausência, o mistério e a incerteza numa entidade irredutível, que encontramos senão o mundo em que vivemos, do qual todas as histórias são desenhadas para nos proteger?

Escrito por
Carlos M. Conceição